sábado, 6 de junho de 2009

"Frege on Demonstratives" por Perry (Mindfuck alert)

Para Perry, Frege teria três formas para lidar com o problema que os demonstrativos
como“hoje” põem à sua teoria. Uma delas é preservar a identificação entre o sentido e um pensamento, isto é, o sentido enquanto valor cognitivo de um enunciado (na medida em que um pensamento é aquilo que é passível de ter um valor de verdade). Assim, a descrição que o falante associaria ao demonstrativo na ocasião do uso determinaria o seu referente.

As três objecções que Perry coloca a esta hipótese são: 1) a irrelevância da crença, 2) a não-necessidade da crença e 3) a não-suficiência da crença.

Em relação a 1), Perry afirma que o pensamento expresso por um enunciado que
contém um demonstrativo não é determinado pelo sentido que dou a esse mesmo
enunciado. O mesmo é dizer que não determina a referência. Por exemplo, é irrelevante eu acreditar que hoje é o dia 25 de Abril de 1981. Quando digo “Hoje faz sol”, o que digo é falso, se hoje é um chuvoso dia 11 de Maio de 2009. Não expressei ( o meu pensamento foi “No dia 25 de Abril de 1981 faz sol) algo verdadeiro. O valor de verdade é independente daquilo que são as minhas crenças acerca do dia em que estamos, da descrição que associo. A minha crença não determina a referência do enunciado, ela é irrelevante para esse efeito.

Relativamente a 2), a objecção da não-necessidade da crença: posso afirmar com
verdade “hoje está sol”, sem saber que dia é hoje. Podemos expressar um pensamento com um demonstrativo sem sermos capazes de oferecer alguma descrição que individualize a referência do termo “hoje”, o dia em que é proferido. Posso afirmar “hoje está sol” sem saber a que se refere “hoje”, sem saber que dia é hoje, e não deixo de poder expressar algo verdadeiro.

Para 3), a não-suficiência da crença: Perry dá o seguinte exemplo usando o termo “eu”, de modo a tornar a ideia mais clara: Heimson (mesmo acreditando que é David Hume) não pode ter o mesmo pensamento de Hume, quando ambos enunciam “Eu escrevi o Treatise”. Um pensa algo verdadeiro, o outro não e , pelo critério de diferença de pensamentos - Se S é verdadeiro y S' não, então S y S' expressam pensamentos diferentes- têm pensamentos distintos.
(A questão é: será que Heimson poderia ter o mesmo pensamento que Hume sem usar o termo “eu”, i.e., ter um pensamento verdadeiro que expresse o mesmo que “Eu escrevi o Treatise” dito por Hume? Não. )
Eliminando o demonstrativo e tentando chegar a um enunciado com sentido completo, imaginemos que Heimson, ao pensar para si próprio – Frege para manter a identificação sentido=pensamento, teria que nos dar um enunciado com sentido completo - “O autor de Inquiries escreveu o Treatise”. Embora seja um pensamento verdadeiro que se refere a Hume (tal como “Eu escrevi o Treatise quando proferido por Hume), não corresponde ao mesmo pensamento de Hume quando diz “Eu escrevi o Treatise”; podia constituir algo falso para Hume (podia não ter a mesma referência para Hume) se este tivesse tido episódios de amnésia em 1755. O que quer dizer que, mesmo neste caso, aquilo que Heimson e Hume pensam não é o mesmo. Heimson não pode chegar a uma descrição de si próprio – manter a referência -sem utilizar o termo “eu”. Não pode haver um enunciado que tenha o mesmo valor cognitivo de “Eu escrevi o Treatise” pensado pelo próprio Hume. (É aqui que Frege vai introduzir a noção da incomunicabilidade entre sentidos).

terça-feira, 2 de junho de 2009

A dissolução da dicotomia racional/social nos novos estudos sobre a Ciência

Perante os diferentes cenários de abordagem do conhecimento científico, tornou-se norma dividi-lo em duas grandes secções: por um lado, temos os Filósofos da Ciência, por outro, os sociólogos. Os primeiros, interessados em conceitos como a verdade, progresso, conhecimento, valor epistémico, abordam sobretudo os aspectos técnicos e lógicos, interessando-se por um tipo de racionalidade cognitiva como aquela que é operante neste tipo de saber. Os sociólogos têm a sua pedra de toque numa racionalidade social, patente nos procesos e interesses presentes no desenvolvimento ou nos produtos da ciência. Ambas as visões são tidas, de forma geral, como excluintes e constratantes.
No sentido de atenuar estas dicotomias, surgem novas propostas epistemológicas no campo da Filosofia da Ciência, como as de Helen Longino, Miriam Solomon ou Philip Kitcher. Neste comentário, tratarei essencialmente das propostas de Longino e Kitcher, apenas me referindo, quando pertinente, à crítica de Solomon ao Empirismo Crítico e Contextual (ECC) de Longino. Procurarei, sobretudo, elucidar dois pontos (em nenhuma ordem específica) que me parecem essenciais: definir aquilo que é a nova epistemologia social em contraposição àquilo que é a epistemologia clássica e o seu papel na dissolução da dicotomia racional/social, e mostrar como o conceito de ciência democrática não pode ser ignorado enquanto ponto de convergência entre os vários estudos acerca da mesma. Tudo isto enquadrado nas posições de Longino e de Kitcher relativas a esta temática. De notar que procurarei agregar estes pontos, devido à necessidade de brevidade deste comentário.
A dissolução da dicotomia racional/social, origem de outros tipos de dicotomia igualmente redutores, é uma das tarefas a que Longino se propõe. Segundo a autora, as práticas sociais podem também ser práticas cognitivas e vice-versa. Esta teoria de uma “epistemologia modesta para sujeitos actuais, empíricos e para uma ciência real e presente” é desenvolvida essencialmente em duas obras, “Science as Social Knowledge” de 1990 e “The Fate of Knowledge” de 2002.
Como notam M. Solomon e A. Richardson em “A Critical Context for Longino’s Critical Contextual Empiricism”, a proposta de epistemologia social de Longino difere da epistemologia tradicional em duas grandes linhas: i) requer subgrupos dentro da comunidade científica para criticar e debater acerca do trabalho dos colegas e ii) pressupõe que, no trabalho científico, tanto operam valores epistémicos como valores não-epistémicos, variando estes últimos de comunidade para comunidade. A ideia por detrás destes dois pressupostos é o criticismo, que pode tornar aparentes os valores escondidos, assim como abrir democraticamente a comunidade científica à sociedade em geral. (cf. Solomon, M., A Critical Context for Longino’s Critical Contextual Empirism, Stud. Hist. Phi. Sci, 2005, pp. 211)
Se os valores variam de comunidade para comunidade, há um que se mantém e que é o êxito empírico, i.e., a conformidade das nossas representações com o estado de coisas no mundo. No entanto, este valor dificilmente se poderá tornar num critério rígido para a disputa científica. Embora possamos classificar a posição da autora como empirista, há a tal consonância já referida com a realidade (que, na verdade, se pode dar de muitas maneiras, consoante os objectivos de uma investigação) que, em última instância, leva ao pluralismo como condição privilegiada na investigação científica. E o pluralismo à necessidade de democratização de todo o processo.
As ideias centrais do ECC (empirismo contextual crítico) são desenvolvidas na obra de 2002, onde a filósofa revela uma visão crítica mas optimista do conhecimento científico. É uma crítica forte, baseada em quatro critérios essenciais acerca do que pode transformar uma mera opinião em conhecimento científico. Essas regras são: 1) a assunção de igualdade de autoridade intelectual, 2) a partilha de alguns valores, especialmente o de êxito empírico, 3) a existência de fóruns públicos de debate crítico e 4) abertura e resposta às críticas colocadas. (Estas normas são características de qualquer tipo de conhecimento, exceptuando a 2) que é própria do saber científico.)
Ainda na opinião de Solomon e Richardson, Longino conserva uma concepção processual da racionalidade científica (rara entre os filósofos da ciência), i.e., em vez de pôr a pedra de toque nas suas consequências, no seus produtos, vai valorizar os processos e as normas que os norteiam (neste âmbito, creio que a epistemologia de Kitcher se revela mais completa). Aquilo que os dois autores vão directamente
interpelar na proposta de Longino é se estas normas são passíveis de serem cumpridas e, se forem, segui-las tornar-se-á um sinónimo de boa ciência? Para tal, vão utilizar casos científicos concretos, nomedamente casos dados em períodos de revolução científica de modo a provar ou não a possibilidade de uma normatividade deste tipo. (cf. Solomon, M., A Critical Context for Longino’s Critical Contextual Empirism, Stud. Hist. Phi. Sci, 2005, pp. 213, 214)
Aquilo que me parece criticável em Solomon e Richardson é que falham exactamente em ver o que Longino pretende com a normatividade da ciência, aliás falham em entender o próprio conceito do que é normatividade, na medida em que esta fornece apenas linhas directrizes que possam levar a uma boa prática. Muitas vezes, não é assim que as coisas se dão, é certo, mas tratam-se apenas de linhas orientadoras e, portanto, as críticas parecem não ter valor. Estamos perante uma concepção ideal (própria da Filosofia?). Esta necessidade de uma normatividade de que fala Longino parece-me bastante importante, pois relaciona-se directamente com a crescente necessidade de questionar acerca das direcções que a ciência deve tomar, os seus objectivos e procedimentos.
Esta tendência na Filosofia da Ciência actual encontra um dos seus mais importantes teóricos, não só em Longino, mas também em P. Kitcher, particularmente em “Science, Truth and Democracy”. Kitcher preconiza a necessidade de uma epistemologia social que se oponha àquilo que a epistemologia tradicional tem feito: seguir o reducionismo de uma perspectiva individualista acerca do conhecimento humano, “social epistemology should be concerned with the organization of communities of knowers and with the processes that occur among knowers within such
communities that promote both the collective and the individual acquisition of true believe.” ( Kitcher, P., Constrating Conceptions of Social Epistemology, p.114). A epistemologia deixa, assim, de perguntar como conhecemos, para concentrar esforços na reflexão sobre os resultados e objectivos últimos da ciência, de modo, a estabelecer em termos normativos as condições de possibilidade de uma ciência bem ordenada (well-ordened science) no seio das actuais sociedades democráticas. Em última medida, aquilo que pretende é oferecer um modelo orientativo que possibilite a optimização dos resultados dos processos de disputa e tomada de decisão científicas, de forma a alcançar os objectivos traçados que devem ser designados de forma democrática, tendo como pano-de-fundo valores que promovam o bem comum. Assim, os tópicos que o filósofo coloca são de duas ordens: por um lado, como designar as metas da ciência nas sociedades democráticas actuais e, por outro, como democratizar os processos de tomada de decisão científica.
Em relação ao segundo ponto, numa ciência bem ordenada, a definição das prioridades para a mesma, e portanto, dos projectos e investigações a assumir maior protagonismo têm que ser dadas por deliberação, e, para tal, é preciso encontrar um método. Kitcher defende que, neste processo, os cientistas não devem ser os únicos intervenientes, já que tal poderia redundar numa ciência obediente aos interesses de certas comunidades científicas ou até mesmo de certas pessoas, em nome da competitividade, desregrando aquilo que são os interesses de toda a Humanidade.
Lado a lado com as regras do procedimento científico estão as prioridades e o rumo a seguir para alcançar os objectivos que definem o bem-comum. O que Kitcher propõe é que a deliberação/discussão se realize em vários estádios; nos primeiros dá-se a transformação das preferênciais iniciais (raw preferences) em preferências tutorizadas (tutored preferences). Nos estádios seguintes, os representantes confrontam as suas perpectivas com as dos outros proponentes. A seguir, as preocupações éticas entram em jogo, discutem-se concepções sobre direitos individuais e as possíveis limitações éticas de determinadas investigações de modo a, por consenso ou marioria mediante votação entre todos os agentes informados e implicados, decidir os projectos e aplicações que devem ser desenvolvidos
Kitcher rompe com a epistemologia tradicional, não só ao preconizar que o processo de deliberação deve ser aberto a não-cientistas, mas também ao apresentar uma interpretação diferente de “signitividade epistémica”, ou seja, daquilo que em ciência pode constituir ou não uma verdade significativa. Aquilo que propõe para os modelos científicos é uma imagem de diagramas significativos no contexto da definição contingente do desenvolvimento/progresso em ciência. O que subjaz aqui é que os valores morais e sociais não podem ser eliminados da ciência; as questões significativas evoluem de forma paralela aos valores contextuais das diferentes épocas, as respostas as essas questões, assim como toda a prática científica, evoluem neste quadro. Os diagramas significativos prevêm diferentes linhas de interesse e diferentes campos de investigação, mostrando também “as ligações entre projectos e técnicas ou partes do mundo natural, métodos ou hipóteses”.
Esta imagem que Kitcher oferece é bastante moldável e dinâmica, converte a ciência numa tarefa colectiva, onde o esforço por sistematizar o mundo responde a interesses práticos e epistémicos cujo valor e delimitação é também em função da sociedade. Isto também é um contributo para uma ciência democratizada que aponta para o pluralismo: não há uma representação unificada do mundo.
No estado actual de coisas em que a ciência se tornou, antes de mais, em tecnociência, a abertura e democratização da mesma é um assunto urgente e de maior importância na Filosofia da Ciência, nomeadamente no que diz respeito ao “controlo” ético de certas linhas de investigação.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Esboço para uma crítica a Holton

O texto abaixo é apenas parte do rascunho de um dos trabalhos que apresentei. Depois de avaliado cientificamente, talvez ponha aqui a versão final. Tem saltos, cortes e omissões. É non-philosopher friendly!


Aquilo que Holton pretende fazer em “Quantus, Relatividad e Retórica” é apresentar uma proposta para a interpretação de textos científicos: vê-los como um diálogo entre diferentes actores, como se se tratasse do argumento de uma peça de teatro, onde o resultado é em função de uma interacção entre os diferentes intervenientes.

Holton acredita que, desta forma, usando este “método”, será mais simples comprender a retórica interna de um artigo científico. (p.93) Tarefa que, na opinião do próprio, não é à partida fácil, uma vez que o cientista, quer por uma questão de formação quer pelos mecanismos de intersubjectividade e consenso praticados dentro das comunidades científicas, procura esconder as suas influências pessoais, sociais, culturais, etc.., i.e., os valores não-epistémicos que enformam a ciência e que estão também eles na origem da publicação do artigo. Daí ser “la útil ficción de que la ciencia se desarolla en un plano bidimensional definido por el eje fenómenico y el eje analítico en vez de una multiplicidad tridimensional que incluye la dimensión temática”. (p. 93)

Este autor vai centrar a sua análise essencialmente em dois artigos; nomeadamente, “On the Constitution of Atoms and Molecules” (1913) de Bohr e “Zur Electrodynamik bewegter körper” (1905) de Einstein. Por razões da necessidade de brevidade deste comentário e, por considerar, que o segundo serve melhor os pressupostos de Holton, concentrar-me-ei nas considerações referentes a esse texto.

(...)

Em “Quantus, Relatividad e Retórica”, distingue-se entre retórica de proposição e retórica de apropriação ou rejeição, sendo que a primeira é activa, corresponde exactamente à proposta de um cientista, ao seu contributo de facto para o estado de uma questão científica. A segunda é passiva e corresponde às respostas a essa proposta por parte dos colegas da comunidade, sendo que estas têm que estar sempre em conformidade com as próprias retóricas de proposição dos investigadores e pelos seus respectivos compromissos temáticos.

Holton vai aplicar aquilo que chama de “escavação arqueológica” (à maneira de Foucault), colocando as duas sub-hipóteses: por um lado, a tarefa que um cientista está a levar a cabo no momento é a continuação do seu “solilóquio” e, portanto, também será previsível aquilo que se seguirá no seu futuro trabalho. Para ele, é possível através da análise de um artigo, desmontar a sua retórica, de modo a perceber aquilo que está por detrás das motivações de um cientista (retórica de proposição) e as consequências daquilo que é afirmado (retórica de apropriação e rejeição).

(...)


A meu ver, a análise do texto de Einstein resulta como sendo muito mais interessante e mais determinante enquanto argumento para a defesa da sua proposta. Analisando o artigo sob a óptica de uma retórica da proposição, o autor defende que encontramos dois estratos; um que corresponde à conformidade existente entre o trabalho que o cientista está a desenvolver e as suas investigações anteriores, e outro,
que constitui um indicador do rumo que seguirá no, futuro, a sua investigação. Estes estratos correspondem exactamente ao dois actores que (obrigatoriamente) se encontram em qualquer texto científico.
O mesmo é dizer que um artigo científico é uma ponte entre o trabalho passado e aquilo que o cientista desenvolverá no futuro. Damo-nos conta que o autor como que se desdobra em diferentes actores situados num mesmo cenário, cada um destes ocupado com o seu monólogo. Há sempre um jogo constante entre os dois momentos temporais do seu trabalho.
O conjunto destes monólogos é a própria produção do cientista e a retórica é marcada por aquilo que fez no passado e aquilo que fará no futuro. No caso de Bohr, o fascínio pelo que será o seu novo tema, o da complementaridade, - que viria a unir todos os conhecimentos físico-químicos ao seu novo modelo atómico-, é deveras notório. No que diz respeito ao texto de Einstein, encontramos logo, no primeiro parágrafo, o actor 1, em que revela uma retrospectiva acerca da sua posição acerca da electrodinâmica clássica e o seu background enquanto estudante. Imediatamente a seguir, encontramos o actor 2, havendo já a manifestação de um desejo de unir a mecânica e a electrodinâmica (o que será feito mais tarde). (Obviamente, para nós leitores do sec. XXI, é muito mais fácil darmo-nos conta da presença destes actores – uma vez que conhecemos todo o seu percurso posterior-, principalmente do 2º, do que um leitor contemporâneo ao físico).
Uma das funções mais importantes de um texto científico é exactamente a sua perpetuação no tempo, o que se liga também à retórica, uma vez que os leitores devem partilhar desse entusiasmo na abertura de novas perspectivas. No entanto, não podemos esquecer que o leitor contemporâneo deve (idealmente) conseguir também aplicar este “método”. Esta é uma das críticas que poderei apontar a Holton, não me parece adequada esta proposta, na medida em que apenas apetrecha o leitor com uma certa distância temporal das ferramentas para uma análise mais completa da retórica de proposição (e até da de apropriação/rejeição). Quererá isto dizer que os textos
científicos contemporâneos não poderão ser convenientemente analisados? Isto implica que quanto mais antigos forem os textos, quanto mais conhecermos acerca do percurso científico do autor, melhor o analisamos? Esta perspectiva holtoniana é passível de levantar muitos problemas de análise.

(...)

Voltando um pouco atrás, estes dois actores não estão sozinhos nem fechados no cenário definido pelo texto científico. Cada actor antecipa as questões dos seus colegas, como se também já estivesse a estabelecer um diálogo com eles, “por más que el científico-autor afirme, por lo general, que su obra se limita a facilitarnos el acesso a la naturaleza misma, tal y como se revela directamente a través de la razón y la eperimentación”. (p.107). Assim, para continuar a metáfora de Holton, podemos dizer que o guião do autor traz à cena outros cientista, outros personagens, como, por exemplo, Lorentz, Föppl ou Mach, no caso de Einstein. De uma maneira muito forte a personagem de Lorentz está presente no artigo. De tal forma que estes nomes apareciam conjugados em muita da literatura especializada, ainda que as suas teorias representassem cosmovisões diferentes: enquanto Lorentz perpetuava uma visão do mundo em conformidade com a época, a de Einstein era revolucionária, com um carácter pretensamente generalizador. Embora apresentassem equações de transformação semelhantes, permitindo a apresentação de resultados observáveis igualmente semelhantes, contemplam objectivos e são produtos de diferentes imagens do mundo. Vários são os pontos de divergência concretos, mas talvez a existencia/inexistência do éter seja aquela mais evidente. Estas diferenças demoraram a ser notadas, no entanto, e o termo Lorentz-Einstein foi amplamente utilizado. (Aqui, às confusões na interpretação, a retórica não pode decidir – é o que Holton chama a inércia da retórica).

(...)

A análise da retórica de apropriação ou rejeição que Holton a propósito do Princípio da Relatividade é, a meu ver, o ponto mais interessante da sua proposta. Creio que, no respeita à retórica da proposição, o filósofo talvez tenha ido demasiado longe na
metáfora.


Embora toque pontos interessantes, não me parece que a analogia com uma peça teatral seja a mais apropriada, já que dá a impressão de reduzir o texto científico não só a uma espécie de ficção, mas também a um texto que, essencialmente, parece não marcar pela diferença em relação a um texto político ou literário, por exemplo. O que quero dizer é que Holton se esquece da parte mais conceptual/técnica – que é, no fundo, o core do texto- do texto e da forma como é comunicada que, até mesmo do ponto de vista retórico, também poderá ter interesse.

Em relação à retórica de apropriação ou rejeição, Holton compara-a a um cenário “externo e colateral” (p.110), em que as personagens, antes no texto, se tornam de carne e osso.

O caso einsteiniano é um ponto de análise privilegiado, uma vez que se deu confronto público. Uma disputa iniciada por Kaufmann que se afirmava como estando na posse dos resultados experimentais que pendiam para a decisão acerca das teorias em confronto, sendo que não eram compatíveis com a hipótese de Lorentz-Einstein (só mais tarde é que Kaufmann separa as cosmovisões de ambos os físicos). Einstein, de início não reage, mas acaba por responder que a sua teoria foi entendida num sentido demasiado fechado, apenas ligado à termodinâmica, e que eventualmente poderia haver algum erro nos dados de Kaufmann. Mais, intui que estes dados pareciam estar a favorecer certas teorias. E até tinha razão: na ausência de uma teoria que seja empiricamente infalível, valores não-epistémicos parecem entrar em jogo. Planck, um dos maiores defensores da teoria da relatividade já tinha mostrado que, havendo dados não-conclusivos nas experiências, era possível fazer deles um uso retórico. Mas é através da reconstituição da conferência de 19/09 de 1906, em Estugarda, perante a Assembleia Alemã de Investigadores da Natureza, em que, chegando o momento em que tem que se optar por uma das teorias, ou a de Max Abraham ou a de Lorentz-Einstein, sendo que nenhuma delas estava completamente provada ou refutada, ambas tinham o mesmo valor efectivo, o que acabou por imperar foi uma certa inclinação pessoal para uma determinada imagem de mundo que quer uma quer outra comportavam, deixando o valor epistemológico para segundo plano.

Décadas mais tarde a imagem de mundo que subjaz à teoria da relatividade acabou por vingar e tornar-se parte integrante da cultura da ciência dos nossos dias, com a ajuda de uma retórica que não encontramos à partida no artigo de 1905. (p.117)

O que Holton, em última instância, vai defender é dada a equivalência epistémica e empírica de duas teorias, as razões que nos levam a optar por uma ou por
outra ultrapassa aquilo que é científico por definição. Podemos encontrar elementos psicológicos ou até mesmo filosóficos que nos orientam na escolha, nomeadamente, aqueles que podem estar relacionados com uma determinada cosmovisão ou com a potencialidade/fecundidade dos temas na formação de nova ciência; “cada teoria prepara el escenario para uma forma futura de ciencia muy diferente de la que propone su rival, un escenario futuro en el que un nuevo grupo de personajes podrá representar sus proprios actos en un drama interminable.” (p 119)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Eu, Putnam e o argumento da Terra Gémea

Poizé. Já há algum tempo que não vinha aqui, por falta de tempo e interesse. A verdade é que continuo filosoficamente produtiva (mais do que nunca) e, finalmente, consegui fazer disto profissão.
Quer dizer... ainda não, porque a FCT deve-me dinheiro desde Março. É só mais um bocadinho de paciência e poderei andar aí a cometer algumas excentricidades como a boa burguesa-fdp que sou.

Vamos ao que interessa... Desta vez, deixo aqui um bocadinho de Putnam, para vos mostrar o que é que eu ando a fazer às tantas da madrugada, já quando as outras criaturas da noite estão a fazer o ó-ó.

Por que razão a extensão do nosso termo (terráqueo) "água" já era a substância H2O mesmo antes de se saber que era H2O (do mesmo modo que a do termo "água" dos habitantes da Terra-Gémea era a substância XYZ antes de se saber que tinha tal composição).

O que Putman pretende com o argumento da Terra Gémea é refutar a teoria descritivista do significado que supõe que compreender um termo é estar num determinado estado psicológico (de crença ou memória), que corresponderia à apreensão (“grasping”) da sua intensão. Uma vez que a intensão determina a extensão (no sentido de que dois termos não podem ter a mesma intensão e divergirem em extensão) segue-se, em última instância, que são os nossos estados psicológicos que determinam a extensão de um termo. Empreender tal tarefa é o mesmo que perguntar se os significados estão ou não na nossa cabeça.

O argumento pretende fornecer um exemplo para termos que podem ter a mesma intensão e extensões diferentes. “Água” é o termo usado no sentido de água na Terra e no sentido de água na Terra-Gémea, só que a água na Terra é H2O e na Terra-Gémea é XYZ, ou seja, o termo assume significados diferentes.

Estendendo este argumento e imaginando dois indivíduos, Oscar1 e Oscar2, falantes da mesma língua na Terra e na Terra-Gémea, no ano de 1750, em que ainda não era sabido que água1 e água2 eram, respectivamente, constituídas por moléculas de H2O e moléculas de XYZ, temos que os dois indivíduos são duplos e têm exactamente as mesmas crenças acerca de água, ou seja, têm o mesmo estado psicológico. Eles compreendem o termo de modos diferentes, atribuem-lhe significados diferentes. (mesmo que estejamos em 1750, quando a comunidade científica não sabia que água era H20). Neste exemplo, a intensão não determina a extensão , o estado psicológico não determina o significado. “thus the extension of the term ‘water’ (and, in fact, its meaning in the intuitive preanalytical usage of that term) is not a function of the psychological state of the speaker by itself” .

Da mesma forma, chega a esta conclusão com um exemplo não-ficcional . É, neste momento, que Putnam toca naquilo que chama de “hipótese sociolinguística” que consiste no seguinte: ainda que grande parte dos falantes de uma comunidade não tenha os conhecimentos científicos que lhes permita dar as condições necessárias e suficientes de modo a determinar a extensão de um termo, certamente que podem existir, nessa mesma comunidade, falantes que estejam na posse desse conhecimento; os especialistas. Os especialistas é que podem na realidade “fabricar” a extensão de um termo. No caso de “água”, termo de género natural, esta hipótese não parece ter aplicabilidade (lembremos que em 1750 ainda não sabíamos que água era H2O nem os habitantes da Terra-Gémea estavam na posse do conhecimento que água é XYZ). Por isso, Putnam vai insistir no facto de que é através de definições ostensivas que se explicam os significados de termos de género natural.

A definição ostensiva de um termo assenta num princípio de mesmidade entre o líquido que eu estou a apontar e aquilo a que a comunidade de falantes em que me insiro chama noutras ocasiões de “água”. Este princípio é condição necessária e suficiente no caso da proposição empírica ser satisfeita, ou seja, temos que considerar esta relação como sendo, antes de mais, teórica: “whether something is or is not the same liquid as this may take na indeterminate amount of scientific investigation to determine”.
Suponha-se que Oscar1 apontava para um copo com água e dizia simultaneamente "isto é água". Perante isto, o que Putnam diz, é que podemos colocar duas hipóteses:

(i) "água" designa o que quer que seja que satisfaça "este líquido aqui" no mundo em que esta definição é usada. Caso em que tem diferentes extensões, mas o mesmo significado.
(ii) "água" designa “este líquido aqui”, em todos os mundo possíveis, o que quer que seja que satisfaça essa definição ostensiva no mundo actual.

O que está suposto em (i) é que o termo "água" designaria a água1 quando usado por Oscar1 e designaria a água2 quando usado por Oscar2. Seguindo (ii), o termo "água" designa qualquer objecto que satisfaça a relação de mesmidade com (de ser o mesmo líquido que este) a nossa água (água1). O primeiro caso assenta numa compreensão do significado de um termo baseado na apreensão da sua intensão e leva-nos a rejeitar a ideia que a extensão é determinada pela intensão, na medida em que, em (i), "água" tem a mesma intensão e diferentes extensões. O autor põe esta hipótese de parte, já que, quando afirmamos "este líquido é água", estamos a dizer que a água é o que quer que seja que se encontre na relação de mesmidade com a nossa água.

É isto que explica as nossas intuições quando achamos que a água2 não é a nossa água ou que o ouro falso não é ouro: a água2 não é água porque não é H2O, o ouro falso não é ouro porque não é Au. Estas substâncias não partilham a propriedade de ser a mesma substância que esta aqui no nosso mundo actual. Nesta medida, podemos dizer a extensão do nosso termo (terráqueo) “água” já era a substância que é H2O, mesmo antes de saber que era H2O (do mesmo modo que a do termo “água” dos habitantes da Terra-Gémea era a substância XYZ antes de se saber que era essa a sua composição química).

A terminologia usada por Putnam é que os termos de género natural são indexicais, significam o que quer que satisfaça a relação de ter as mesmas propriedades que a nossa água, o que, em última análise, é dizer que designam rigidamente no sentido kripkeano (“água” designa rigidamente o mesmo líquido em todos os mundos possíveis em que esse líquido existe) .

quinta-feira, 21 de agosto de 2008

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Ainda às voltas com o Frame Problem


E vai ser assim até dia 15 de Setembro. Tira-me anos de vida, eh!

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Recuperar...

"O Jogo dos Possíveis – Ensaio sobre a diversidade no mundo vivo” - François Jacob – Gradiva

Um bestseller da terceira cultura pelo Nobel de Medicina de 1965 (juntamente com Jacques Monod e André Lwoff), que pretende explicar ao público em geral os mecanismos da evolução.

A ideia mais interessante que retirei deste livro de 1982 foi a noção da evolução enquanto jogo dos possíveis. Citando-me a mim própria (wee): “No segundo capítulo de O Jogo dos Possíveis de F. Jacob é-nos apresentada a teoria da evolução, segundo uma lógica dos possiveis, em que esta procede como um bricoleur. A evolução entendida como um trabalho de bricolage não tira as suas novidades do nada. Um bricoleur não tem um plano, na verdade ele até nem sabe muito bem o que vai fazer, mas recupera tudo o que encontra, até os objectos mais improváveis para daí fazer um novo objecto com utilidade. (...) No evolucionismo de Darwin, as estruturas novas são elaboradas a partir de orgãos preexistentes que, originalmente, estavam encarregados de uma tarefa, mas que progressivamente se adaptam a funções diferentes. Aquilo que Darwin chamava de pedaços de anatomia inútil são assim vestígios dalguma função mais antiga.”

Escrito de forma fluente e acessível ao grande público. Um clássico dentro do género.